quinta-feira, 26 de junho de 2008

Encasquetei

Encasquetei. O assunto não me saía da cabeça. Prendi-me nele e ele a mim e o abraço não mais se desfez. Fixo e apertado, assunto grudado. Era o mesmo assunto aquele que me cobria tal qual cobertor, de modo que outros assuntos viram impermeável a barreira no meu cérebro.
Cérebro? Por que cérebro?
Mania de cérebro no mundo atual, talvez o laço amarrado e fixo e forte de assunto comigo tenha sido na mente, ou na perna, no coletivo das unhas, ou até no cotovelo.

Cotovelo?
Aquele que eu uso pra apoiar o braço que apóia a cabeça que apóia o vago olhar que nada enxerga. Mas vê mais do que todos se se trata do assunto amarrado, e nenhum outro assunto adentra meu cotovelo, senão aquele que comigo anda de braço dado.

Qual assunto mesmo? Aquele assunto.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Sem início, meio e fim

Eu o encontrei na rua e lá se iam dez anos.
(Recomece, recomece... dez anos é muito redondo. Quem vai acreditar?)
Eu o encontrei na rua e lá se iam oito anos, dois meses e dezoito dias.
(Recomece, por favor! Quem acredita que o personagem, qualquer que seja, pode saber exatamente dias e horas que separam o presente de um último encontro? Recomece!)
Eu o encontrei na rua e lá se iam... lá se iam... oito anos, mais ou menos, que não nos víamos.
(Continue e vamos ver se é capaz. Mas não hesite tanto.)
E ele não me reconheceu, prontamente. Era um dia chuvoso e cada guarda-chuva que passava, apressado, era um obstáculo entre nós.
(Continue, vejo que está se esforçando...)

Eu o encontrei na rua e lá se iam oito anos, mais ou menos, que não nos víamos. E ele não me reconheceu prontamente. Era um dia chuvoso e cada guarda-chuva que passava, apressado, era um obstáculo entre nós. Acenei e gritei seu nome e, até que dissesse 'Virgínia!' com aquele tom de quem encontra uma agulha no palheiro, ainda pude notar seu olhar de dúvida esquadrinhando meu rosto. Nos abraçamos, depois de ele enfim lembrar meu nome. Assim mandava a velha etiqueta entre nós, aquela dos toques calorosos e amigáveis. Então ele perguntou, porque era o mais fácil, porque era o imediato, porque era o de sempre, porque era universal: E aí, me conta, o que tem feito?

(E o que tem feito a Virgínia? Essa sua personagem que se espanta com o que quer que seja, o que ela tem feito? Continue o texto!)

Nada. Virgínia não tem feito nada de que se possa falar num esbarrão após oito anos.

(Recomece!!!!! Recomece!!!!! Escreva outra coisa!!!).

Fim.

Mundos Bissextos

Em ano bissexto, bissexta me encontro. Torno-me bissexta igual a um vaga-lume. Que pisca quando quer, onde pode e quase nunca. Bissexta sou agora, pois nem sequer consigo sentir a pele sob o toque de minha própria pele. Dedos, tenho todos. Mas tato me falta. Bissexto é o ano em que procuro a mim mesma e encontro algo fácil de ser aglutinado em um conceito. Ao meu lado, nesse ônibus incerto e duro, vejo pessoas insones e bissextas. Dessas que nunca se vêem mas que possuem suas existências paralelas. Eu me ocupo de mim e os outros se ocupam de si, sem que saibamos de nossas mútuas existências. Bissextos somos uns para os outros e uma vez na vida, outra na morte, nos esbarramos pela rua, sem que nem nos reconheçamos – “ah, você é aquela que há três anos atrás tomou o mesmo ônibus que eu, saltando cinco pontos antes e que agora cruza a mesma rua que eu, indo para o lado oposto, com pressa e preocupação, eu lembro de você...”. Ninguém diz isso jamais e o reconhecimento é tão bissexto quanto um conhecimento pleno que posso ter de tudo ao meu redor. O dia 29 de fevereiro foi ontem e pude pensar naqueles que comemoraram seus aniversários apenas de quatro em quatro anos. Não têm a sorte – ou a infelicidade, para alguns trata-se de sofrimento puro – de brindar mais um ano de 365 dias em 365 dias. Esta é uma ocupação que não os visita, esses aniversariantes bissextos e raros, todo ano. E o dia 29 de fevereiro é sempre inigualável. - Todos os dias o são! – alguém objeta. Objeções que não são bissextas não merecem respeito e atenção. Continuo o pensamento. Continuo a caminhada. Bissexta que sou, desisto de pensar no assunto. É hora de enfrentar o março que se anuncia.