domingo, 24 de maio de 2009

Borrão 2

No ponto exato em que me encontro, perco-me daquilo que antes era. Pois em cada momento é-se algo e quem me contou foi Clarice Lispector. No ponto exato. Onde me perdi. Volto a me achar no momento mesmo em que escrevo o que nem sequer pensara antes. É aqui que escrevo de forma solta. Forma solta? Solta-se a forma e o que se tem é borrão. Textual. Gramatical. Liberal. Literal. Literário, quiçá. Até que se fechem os livros todos e o mundo volte a ser o que era: água, insetos, leguminosas, nuvens, gente que olhava sem ter o que dizer, sombras, pingos. No ponto exato em que me manifesto, devo mostrar o que sei. E o que sei é tudo o que não interessa saber. Vou ler na Revista algo que interesse na conversa, mesmo que se perca em todo o depois de hoje. Vou ler na Revista algo bom pra repetir e contar. No ponto exato em que viro linha, deixo de ser intervalar. E o que quero com isto aqui? Alguém poderá dizer... Alguém poderá gritar e até mesmo ser ouvido o seguinte lance sem replay: que não há moral da história, que não há informação valiosa, que não há linearidade, mas que inventamos os contornos disso tudo e nos encaixamos bem nas rotas previamente destinadas. No ponto exato. Em que me encontrei. Foi no livro entreaberto que jamais ousei fechar.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

De esguelha

Não tinha coragem de sair de casa. Morava em uma vila, numa das primeiras casas. E quem saía era sua avó, que comprava comida, que pagava contas, que ajeitava o quintal, que dava suas caminhadas vespertinas. Mas ela não saía de casa. Apenas espreitava o mundo. Cheirava-o, e bem de longe. Não era raro ir até a janela e, numa fresta da cortina, ver o movimento de crianças que havia no pátio da vila, ver a chegada do carteiro, sempre simpático e cantarolante, observar a ida dos moradores para o trabalho e sua chegada, todos eles meio exauridos e esvaziados. Ela não saía. Mesmo com as insistências da avó, que tentava de tudo e uma vez deu de chamar um médico para que ele a convencesse de sair. Era um médico proctologista, mas simpático, com dom de cuidar do outro, e ainda que aquela não fosse sua especialização profissional, aceitou de bom grado o que a velhinha lhe pediu e, uma vez lá chegando, nada conseguiu, nenhuma persuasão ou convencimento foi capaz de fazê-la sair de casa, nenhuma receita e nem os anos e anos de faculdade e estudo. Porque ela - ela olhava o mundo muito de esguelha. Via televisão e sabia das coisas do mundo também por esse canal. Comia bastante, assistia novelas e telejornais e observava o movimento do mundo de esguelha. Assim era melhor. Assim era prudente. Ela não ousaria colocar os pés para fora de casa e dar de cara com o turbilhão que o mundo é. Não ainda.

(texto publicado no número 4 da revista digital Rabiscos e Afins).