quinta-feira, 8 de abril de 2010

Algarismos


Lia queria esquecer os oito algarismos do número do celular do mentecapto com quem saíra por um mês, pois apesar de haver dois meses que não tinha notícias dele, que não sabia de seu paradeiro, que não escutava sua voz, ainda conseguia saber exatamente qual era o número, mesmo tendo deletado o contato de seu aparelho o mais rápido que pôde. Ao contrário: Lia lembrava-se daquele número como nunca, ainda que não tivesse mais serventia alguma. Espantava-se com a força de sua memória, que funcionava à sua revelia: ela memorizara aquela odiosa sequência numérica além de todas as outras cifras (senhas, documentos, cartões, datas de aniversários, endereços) que a vida impingia à sua consciência. E era tão estúpida e tão irônica e tão trocista e tão anárquica, e também maquiavélica, ardilosa, irritante, insana e absurda, a sua faculdade de memorizar, que quando Lia precisou ir ao banco no domingo chuvoso para sacar 50 reais fundamentais à sobrevivência na tempestade, esqueceu sua senha de oito algarismos. No entanto, era só pensar no celular do sujeito mentecapto que imediatamente a imagem dos números piscava como se gargalhassem, dançassem e fizessem cosquinha nas têmporas de Lia. E se o pensamento perdurasse, virava melodia: Lia pegava-se cantarolando aqueles números que não acessavam sua conta, apenas remetiam a um mentecapto entre tantos outros.

Rabisco: Vivian.
Garatuja computadorizada: Johandson

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Garganta (de Vivian e de Johandson, texto e garatuja)



Há tanto tempo não via o sujeito que chegava a ser descabida qualquer resposta para a pergunta “o que manda de novo?”, que ele lhe lançara sem aviso prévio. Se fazia meses, anos ou séculos que não o via, muita coisa de novo acontecera na periferia da vida, embora o cerne continuasse igual, mas como falar daquilo? Se exigido assim de chofre, todo assunto ficaria fora do eixo, sem contexto e avulso. Resolveu então falar sobre a sua tosse. Tossia tanto, mas tanto, nos últimos dez dias, que era capaz de morrer naquelas crises de tosse que duravam trinta minutos e ameaçavam arremessar sua goela longe, estraçalhar o céu da boca e romper outras frágeis estruturas do palato. O que mais lhe acontecia, ultimamente, era aquela tosse estonteante. Falou, então, pro sujeito que, enquanto tossia, o mundo era garganta. Só garganta. E apenas a sua, cheia de atrito e de alguma gosma. A tosse vinha sendo sua única vida naquela última semana, a melhor das vidas possíveis, a única cabível, porque, de resto, a vida era a mesma, embora outra. Depois de falar tanto de sua tosse, sentiu-se ruborizar. O quão ridículo podia ser uma pessoa que, de novidade, só tem a tosse? (Mas não era só aquilo. Era sobretudo o fato de o mundo ter se transformado em garganta ou, mais que isso, a sensação corporal de sua própria garganta pulsátil; será que ele alcançaria aquele achado?). Depois de falar e se constranger ouvindo a própria voz rouquenha, pigarreou de leve e, numa manobra que considerou sutil, devolveu a pergunta: “E você, o que manda de novo?”. Após breves momentos e algum rubor, o sujeito disse, incerto: “Tenho espirrado horrores e o mundo é só nariz quando isso acontece”.

Desenho do Johandson.
Texto da Vivian.