sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Notícias de Edivaldo

Era perto do ano novo. Todos naquele clima de virada, de promessas, de futuras dietas, de roupas brancas. O carteiro chamou. Vinha uma carta de um amigo que eu não via há muitos anos. O Edivaldo. Ele mesmo! Havia se mudado com a filha e a esposa para Roraima. Era militar. Tinha essas coisas de ser transferido. Quando ele contou a notícia de que teria de se mudar, fiquei com vontade de chorar. O meu melhor amigo ia embora, aquele que durante a faculdade me explorava nos trabalhos em grupo, aquele que colava de mim nas provas do colégio, mas que era o mais engraçado e tão problemático quanto eu, daí nossa imensa afinidade. Eu gostava da amizade dele porque ele era um problemático que disfarçava e eu achava que, só de estar ao seu lado, poderia imitá-lo e me tornar uma problemática que ninguém sabe que é. Ele era tímido e inseguro mas parecia muito dono de si. Era quase um atleta, com sua rotina de acordar cedo, ir à praia, caminhar, correr, andar de bicicleta. Eu não sabia fazer nada daquilo, mas dançava melhor que ele e escrevia melhor também, embora ele jurasse a si mesmo que não (e eu sabia ler alguns de seus pensamentos, melhor até que ele). A gente ficava nessas competições inúteis e acabou que, com o passar dos anos, ele se tornou meu confidente, e eu dele, até que outros amigos do sexo oposto viessem, para um e para outro. Era ótimo ter um confidente do sexo masculino. Eu podia saber as opiniões de um legítimo representante da macheza brasileira. E ele era legítimo mesmo, quase um puro sangue!
O fato é que nós crescemos juntos, essa é a verdade. Fizemos a mesma faculdade, nos formamos na mesma profissão, lamentamos juntos os fracassos, as frustrações, as dificuldades do mercado de trabalho, estudamos e lemos livros juntos, colocamos em prática 34% de nossos planos juvenis e sempre que nos escrevíamos falávamos em nossos longos e inumeráveis ps que realizaríamos em breve os outros 66% (entre os quais fundar uma instituição pan-total, um lugar que oferecesse de tudo um pouco, de psicanálise a rituais religiosos de quaisquer credos, de cursos de malabarismo a esportes radicais, de oficinas de fazer amigos a aulas de memorização da história mundial, de práticas sadhus a cursos de como paquerar com sucesso na noite carioca, e por aí vai). Mas depois que ele foi para Roraima, nosso contato foi diminuindo, apesar dos facebooks, skypes e aeroportos da vida.
O engraçado foi o inusitado daquela carta escrita a mão, que o carteiro entregou após chamar no portão. É, o Edivaldo sabia ser inusitado. Ele tinha uma agenda de contatos que deve ter sumido após o casamento, assim como tinha umas bicicletas que quase voavam. Ele sempre tinha uma opinião resmungona também. Mas aquilo de escrever carta era demais.
Reconheci a letra no envelope na hora (afinal, estudáramos juntos tantas vezes que, mesmo ele indo na minha aba na faculdade, ao menos eu o fazia copiar as questões de alguns trabalhos que fazíamos em grupo) e abri rapidamente: o que ele estaria aprontando agora? Fiz as contas mentalmente: a filhinha dele, Clarissa, devia estar com sete anos. Do envelope, caiu uma foto: a menina estava linda. Desdobrei a carta, uma folha de papel com aquela letrinha espremida dele.
"Querida Vilma, estou voltando em breve! E nada melhor do que as notícias escritas com a letra da emoção! Não vejo a hora de voltar, de rever minha família, meus velhos amigos, minha cidade, não vejo a hora de ir à Lapa dar um rolé, como estará a Lapa, aquela mesma à qual fui tantas vezes e em cujo prato cuspi tantas outras? Como estará tudo? Estou comprando um carro e vamos todos fazer uma viagem, quando eu chegar. Minha volta está prevista para março. Vá marcando suas férias, vá dando seu jeito, comigo agora é assim, depois que virei milico deixei a indecisão de lado, aquela indecisão adolescente de faculdade e resolvo tudo com uma ordem ou duas. E vamos falar com nossos velhos amigos problemáticos: Brenão, Gustavinho, Brunona, Miguel, Queila. Vamos dar um rolé pela Costa Verde pra matar as saudades dos velhos tempos! E a Clarissa vai comigo, que ela tá amarradona em esporte radical e resolveu que quer ser poeta. Você tem que ler as poesias dela! Grande abraço, daqueles calorosos!"
Fechei a carta feliz e imaginei como ia caber aquela gente toda dentro do carro: o Brenão era enorme, como o nome diz; a Brunona só não era mais Brunona porque tinha um Brenão pra superar; e mais o Miguel, a Queila, o Gustavinho. Como seria aquilo? Será que ele comprara um daqueles super carros mega enormes em que cabe uma família italiana inteira? O que estaria aprontando meu grande amigo Edivaldo? O fato é que ele estaria voltando. E que os amigos sempre voltam. Fechei a carta com uma certeza: as distâncias são sempre relativas e voltam a ser tão pequenas como nos velhos tempos. Os amigos voltam, os intervalos acabam, as pessoas vêm e vão. E quando a gente olha pra trás e vê o tempo que passou longe, aquilo não era nada. Na porta dos quarenta anos, Edivaldo estava voltando com a filha atleta e em breve todos nós estaríamos na estrada, rindo como nos anos da faculdade. Quem sabe o Brenão poderia levar sua namorada? Aquela que ele demorou tanto pra encontrar? Disso o Edivaldo não sabia, mas seria a primeira novidade que escreveria no e-mail que mandaria a ele, naquela mesma noite (porque responder por carta também já é demais!).

Sentada na Sala

Ela estava sentada na sala no escuro sabendo de tudo silente cansada na sala sentada sentindo saudade no escuro silente da sala que mente que é bela que é doida que é forte na sala sentindo o cheiro de sal na salada sadia do almoço tardio. Na sala, ela, sozinha, silente, no escuro, pensava em ciladas... Com medo de tudo no escuro as sombras com medo do nada de si e do mundo com medo de ter que ouvir que a sala despenca no mundo. Cilada. Na sala. Sentada. Sozinha. Longínqua. A tarde que é longa cansada na sala e ela sozinha sensata no mundo. Sem papo sem tato e afago na sala de cores tão ralas. Lembrando da mala aberta de pó e poeira, na sala vazia. Ela sozinha silente sedenta santinha. Na sala sangrava de tanto sonhar, de tanto calar... no escuro.

(Texto publicado no Jornal Plástico Bolha em 2008 ou 2009 - quando mesmo? - e escrito em 2001.)

domingo, 11 de dezembro de 2011

Aos domingos


Aos domingos, Madá acordava no mínimo às dez e no máximo ao meio-dia. Levantava-se silente, tomava seu café fraco, banhava-se e ia caminhar pelas ruas da Glória. Às vezes passava na feira, comprava alguns legumes, outras vezes ia até o Aterro do Flamengo, observava as famílias felizes, as crianças bem dispostas, o sol iluminando o asfalto, a grama, o horizonte. Voltava pra casa, almoçava se tinha fome, às vezes no restaurante da Andrade Pertence, às vezes em casa. Raramente tinha companhia, mas gostava de observar o movimento típico dos dias de folga da maioria das pessoas. Aos domingos, seu marido Carlo fazia seu plantão na clínica psiquiátrica e estava acostumada, Madá, a passá-los sozinha, uma vez que não era a folga de Carlo.
Muito de vez em quando Madá ia ao cinema com Olga, amiga de colégio, mulher tão dedicada aos filhos e ao marido que era raro ter um domingo livre assim para tomar um café, bater um papo, ir ao cinema (era mais comum conversar com Olga pelo bate-papo da internet). Malgrado não tivesse companhia certa, Madá não se sentia triste aos domingos embora aquela menina, Tábata, que agora a via caminhar solitária no Aterro achasse todo aquele silêncio um indicativo de uma solidão difícil de contornar. Afinal, Tábata estava no Aterro, com seu pai, sua mãe e seus dois irmãos mais velhos, Tadeu e Tiago, num dos variados passeios que seu pai inventava para todo domingo. Tábata estranhava as pessoas sozinhas, que passavam mais do que dez minutos entretidas em alguma atividade silenciosa sem nenhuma companhia, porque, até ali, companhia era o que Tábata mais tinha em sua vida (a começar pelo quarto, que tinha que dividir com Tadeu e Tiago). Aquela mulher que andava calmamente pela grama, chinelos nas mãos, não teria filhos, não teria um namorado, não teria irmãos? Mas Madá não fazia idéia de que aquela menina franzina e de óculos a observava com leve e brevíssima perturbação. Se notasse aquela atenção que a menina lhe dedicava, teria feito alguma diferença? Teria parado para explicar, dizer que não era nada daquilo, contar-lhe, com doçura e paciência, que a felicidade não vem sempre acompanhada (e geralmente vem sozinha)? Teria mostrado a ela outras partes do mundo que talvez Tábata só pudesse compreender (se um dia acontecesse) muito tempo depois? Teria falado a ela de Clarice Lispector, de Guimarães Rosa, de Fernando Pessoa e de que tudo isso e mais muitas outras coisas só se pode desfrutar sozinho (ainda que haja alguém ao seu lado)? No entanto, Madá caminhava, naquele domingo, envolta em felicidade tão tranqüila que não percebia que a olhavam. Não se incomodava de não ter filhos. Não se incomodava de que Olga ou qualquer outro de seus pouquíssimos amigos estivessem envolvidos com suas vidas cotidianas, suas tarefas costumeiras, suas famílias felizes ou não. Aquele era um dia em que Madá tinha todo para si e para seu pensamento. E, por razões diferentes de Tábata, adorava os domingos: eram dias sem horário, sem demarcações, sem exigências, sem semblantes forçados. Por mais duradouros que fossem os domingos, neles era possível caber qualquer coisa, sem que houvesse uma imposição externa, salvo raríssimas exceções. Era o dia em que Madá fazia as suas descobertas sozinha mesmo, do jeito que mais gostava, para depois compartilhá-las ou não com Carlo, com Olga, com o mundo.
Naquele domingo, chegaria em casa, leria alguma coisa, descansaria, navegaria um pouco na internet e tudo bem. Talvez fizesse um brigadeiro. Talvez ligasse para Olga, para saber se tudo bem, como vão as coisas. Talvez escrevesse um e-mail. Talvez abrisse sua caixa de antigas cartas e relesse algumas. Havia alguma possibilidade de que fizesse uma arrumação em seu armário. Ou talvez dormisse cansadíssima. Talvez não fizesse nada e visse Fantástico. E tudo ficaria bem, tudo bem. Porque aos domingos, longos ou curtos, invernais ou outonais, ficava sempre tudo bem.