segunda-feira, 23 de julho de 2012

Macarrão Instantâneo


Fast food é comida ruim que você faz sem precisar gastar muito tempo do seu dia, que já é pouco e cada vez encurta mais. Tempo é um tema ao qual os filósofos dedicam muitos instantes sem chegar a conclusão alguma que o valha. Instante é a medida de tempo que você pode gastar para fazer um macarrão do tipo miojo, que também é chamado de comida instantânea. Instantâneo é aquilo que tem a capacidade altamente invejada de se fazer existir ou de se fazer entender ou de se fazer desejar em um instante. Instante é a medida do tempo que você gasta para passar de um pensamento a outro. Pensamento é um processo cognitivo de tese, antítese e síntese, silogismos e neologismos, fantasia e horror. Horror é a sensação de que o mundo vai acabar e de que você não fez nada que te alçasse à categoria de especial. Especial é tudo o que não é medíocre e que causa espécie, assombro, surpresa àqueles que com ele tomam contato. Contato é a ligação de algo com alguma coisa. Alguma coisa é um conceito dotado de tanta imprecisão quanto tudo que se disse até agora neste texto. Imprecisão é a qualidade maior presente no sabor do macarrão que se faz em um instante. Instante é o tempo que o ponteiro precisa para alcançar o número 12 do relógio. Número 12 é o número da casa da minha tia, de nome Celinha, casada com meu tio, de nome Tavinho. Tia Celinha e Tio Tavinho adoram comidas que não sejam instantâneas, nem momentâneas, nem fugazes, nem velozes, nem superficiais, nem vegetarianas. Celinha não sabe o que é o instante, nem o vazio, nem a morte. Só pensa em agradar ao tio Tavinho e aos filhos. O tio Tavinho não faz idéia do que possa ser o imperativo categórico e nem o mundo como vontade e representação. Só pensa em ver futebol, beber cerveja, consertar carros na oficina e em outras coisas que não convém falar. O filho mais velho da tia Celinha e do tio Tavinho fez vestibular e começou a estudar filosofia, para desgosto da família. O primogênito de Celinha e Tavinho não puxou a nenhum dos dois e se chama Humberto. Vive às voltas com livros e começou a questionar tudo o que os pais davam por certo. Tornou os almoços insuportáveis quando veio com aquela história de que o instante sem lugar é o que realmente importa. Causou gastrites que viraram úlceras no tio Tavinho quando resolveu fumar maconha e citar Platão quanto bem entendia. Tio Tavinho, que nunca fora dado a insônias, deixou de dormir, pois tudo virava pergunta sem resposta e a tudo o que ele dizia vinha o Humberto com uma frase ininteligível e pomposa. Inclusive tia Celinha e tio Tavinho já não tinham mais certeza de nada. A tartaruga Neném, da família, passou a ser objeto de acaloradas discussões, quando Humberto resolveu trazer para a ceia de natal o assunto estranhíssimo acerca da corrida de Aquiles com a Tartaruga e o paradoxo que a família nunca conseguiu entender. Humberto tecia longos sermões achando belíssima a permanência de Neném, a tartaruga, sempre no mesmo lugar. Entretanto, da perspectiva da família, ele já não falava lé com cré, mas, quando foi expulso de casa por ter tornado a convivência entre todos insuportável, foi num único instante que se deu conta de que não tinha um tostão no bolso, de que só sabia cozinhar macarrão instantâneo e que teria de voltar atrás. Atrás é uma posição no espaço situada antes daquela na qual a pessoa, no caso Humberto, se encontra, e pela qual, presume-se, ela já passou. Passado é outra dimensão do tempo, aquele que é difícil conceituar mas que passa voando.

(Conto que deu origem à animação O Filho das Flores, de Johandson Rezende, com texto do conto.)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A primeira metade




Quando chegava o dia primeiro de julho de qualquer ano, Joaninha assustava-se um pouco e se dava conta de si, de modo a apurar o olfato e entender o cheiro que saía de seus pulsos, de modo a mirar no espelho sem pressa e contar os novos fios de cabelo branco despontando no alto de sua cabeleira grisácea, de modo a também medir a altura e ver se se curvara ainda mais ou não, de modo a contabilizar os progressos feitos, apalpar as próprias mãos, conferindo os calos novos e os antigos. Fosse o ano par, fosse o ano ímpar, quando chegava o primeiro de julho, Joaninha sempre interrompia a marcha, deitava-se na primeira pausa para respirar, se houvesse alguma, e se concentrava na ida e na vinda da respiração, nos movimentos torácicos, e se sobrasse tempo piscava várias vezes para se certificar de que seus olhos continuavam vendo o que sempre viam e se a lubrificação daquele globo ocular às vezes ardido, às vezes suave, estava ok. O primeiro de julho não passava em branco, e ela dizia a si mesma: foi-se, então, uma metade, falta a outra. E era como um novo mezzo-revéillon, quando então Joaninha elaborava a lista do que faltava e a lista do que já se resolvera, abria e fechava as mãos, no intuito aumentar a elasticidade das garras e, com isso, segurar fôlego extra, e continuar a caminhada até a próxima pausa do cafezinho.