quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Não era eu




Não era eu. Não era eu ali, roendo as unhas que deixei crescer por um ano, arranhando a casca por cima da ferida pulsátil. Não era eu ali, esperando que as horas passassem como quem observa os vagões do metrô correndo em alta velocidade, não era eu ali, constrangida comigo mesma, confrangida por não ter escolha, contraída por conta de um medo sem tamanho e sem motivo. Não era eu ali, não era mesmo eu ali, não eu, era outra, outra quem?, mas eu não, não era eu ali enrolando no dedo indicador uma mecha de cabelo pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, e tampouco era eu que balançava a perna direita, pra cima e pra baixo, veloz, voraz de chão, também como quem tem pressa em esmagar mil estalinhos que só explodem um de cada vez, ou até como quem mói as migalhas de pegadas alheias. Não era eu ali em toda aquela insanidade e em toda aquela ansiedade que poderiam ser medidas a metro, pesadas a kilo, pintadas com tinta acrílica, de tão densas, de tão vívidas. Não era eu ali ponderando onde a tela - o retrato da ansiedade, o sumo da insanidade - seria afixada, talvez no quarto, talvez na sala, apesar de o forte da ansiedade não ser a estética. Não era eu ali nervosa, acumulando saliva na boca, e não era (não podia ser!) eu ali pensando naquelas formas todas e inteiras de recriar o quebra-cabeça que havia se tornado a minha vida naquele mês de janeiro. Não era eu ali que fazia os cálculos do que daria no futuro as consequências das palavras que não pronunciei, as imagens impolutas que risquei, as ideias que apartei de mim. Não, definitivamente, não era eu, era outra, era a antítese de mim mesma, e se fosse alguma coisa que valesse a pena definir, só podia então ser aquela que viria antes do definitivo eu, cujas fronteiras ainda estavam por ser traçadas. Mas não era eu ali e não era eu ainda.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Linhagem


Antuérpia, que odiava seu nome, acordou de saco cheio. Arrastou-se o dia inteiro em cima de um sono sem origem. Bebeu café, antes das três horas, e se sentiu emergindo da bancarrota. Chegou a comentar com sua mãe, Petra, que também não suportava seu nome:

Esse café me salvou da bancarrota.

Petra não entendeu o comentário da filha, mas acreditou que o café que tinha feito estava a gosto. Pensou em perguntar, Antuérpia, minha filha, você sabe o que é bancarrota? Até formular a pergunta, demorou-se na indecisão.

É falência, não é, mãe? Sinto-me falida, vivendo uma espécie de bancarrota existencial ou espiritual, não sei bem.

Petra entendeu bem. A filha completou dizendo que era algo do dia, aquele dia, nublado, feriado, mortos, chuva, biorritmo, constelação astral, não sabia bem os porquês. O fato é que o café a revigorara. Uma leve pressão sobre a cabeça - que até poderia se transformar numa enxaqueca mais tarde - sumiu após o benfazejo líquido escuro.

Depois foram se sentar ao lado da vovó Lupicínia, que também provara do café, que também se sentia emergindo de uma exaustão sem causa e via televisão sem meta e destino. As três, na sala, sentiam-se bem, às cinco e meia da tarde.

Vovó Lupicínia nada dizia em geral, mas também não tolerava o próprio nome.