quinta-feira, 16 de junho de 2016

auto-ficção dominical



você quer sair de você. porque é domingo, porque faz sol, porque não faz sol, porque não é mais domingo. você quer sair de você porque odeia domingos, porque odeia. então inventa. corre, anda, vai, volta, fala, escuta, liga, desliga, escreve, apaga. o computador – aquele notebook aberto espreitando os movimentos da casa – te espera, risonho. há um riso de escárnio em sua tela. você quer fechar o notebook mas antes passa um pano molhado no chão da casa, que quer fugir de você, que te expulsa com seus cheiros e poeiras acumulados. a casa quer sair da casa, porque é domingo, porque o silêncio entorpece suas paredes já prestes a cair. suas paredes, há muito bambas, com rachaduras invisíveis, querem sair de si, e não há motivo. você se olha no espelho e ainda percebe manchas do lápis de olho e do rímel que passou ontem. fica melhor no dia seguinte. esse efeito, o do dia seguinte, é o mais bonito. o dia seguinte é sempre uma promessa, mesmo que não se cumpra. você então resolve sair de casa, deixando tudo como está, e está tudo uma bagunça. você carrega sua bagunça embrulhada e esburacada dentro do estômago, desce a rua, um passo no asfalto depois de outro passo no asfalto, até alcançar a esquina. percebe que o movimento é escasso, o que reitera que é domingo, e comprova que a vida é uma lesma preguiçosa esturricando ao sol. você resolve então – já que enfim conseguiu sair de você – deitar-se ao sol, ao lado da lesma esturricada, em plena esquina da sua rua com aquela outra. você se deita, sentindo o asfalto morno, porque o sol havia batido ali há pouco. você e a lesma, deitadas, na esquina de sua rua, livre de sua casa (como uma epiderme morta que deixou pra trás com alívio), ouvindo o barulho dos carros esporádicos que passam em busca de alguma fuga longínqua. você sabe que alguns desses carros terão êxito, conseguirão fugir, outros terminarão o dia decepcionados consigo mesmos, mas sabê-lo não torna você menos infeliz. você pede os óculos escuros da lesma emprestados, ela cede sem pestanejar, ainda que o sol não esteja incidindo diretamente sobre você. você quer sair de você, a lesma quer continuar nela mesma, estão lado a lado contemplando o vazio, não há mais nada a fazer ainda que haja muita louça na pia pra lavar. você dá de ombros porque conseguiu sair de você por alguns instantes e deve aproveitá-los ao máximo. não é sempre que se consegue a liberdade de um descanso no asfalto. mas isso tampouco torna você menos infeliz, apenas menos cansada. e só um pouco. você fecha os olhos, ingrata. a vida não te leva a nada.

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